Godard

Jean-Luc Godard está morto. Tinha 91 anos. Segundo a família, ele optou pelo suicídio assistido, pois “ele não estava cansado, apenas esgotado”. Há muita coisa a se refletir sobre isso, mas deixarei o tempo assimilar os pensamentos.

A impressão que fica, nas primeiras horas após sua partida, é que, com Godard, morreu o último pináculo – não somente da “Nouvelle Vague”, aquela geração de jovens que nos anos 1950 e 1960 trouxeram uma nova forma de fazer cinema e pensar sobre cinema, mas principalmente do cinema em geral, uma arte única que depositava uma confiança total no ato de contar histórias através de imagens. Parece que chegou o fim de uma era. Mas disso, eu também deixarei o tempo assimilar os pensamentos.

O que posso dizer agora, de minha parte, é o seguinte: demorei a entrar em sintonia com Godard (se é que algum dia eu entrarei em sintonia – termo esquisito, meio cafona, mas enfim); as primeiras visões de O Desprezo/Le mepris e Acossado/À bout de souffle foram boas, mas ficou um pouquinho de decepção, talvez por eu ter ideias preconcebidas a respeito do que os filmes e Godard representaram dentro da “Nouvelle Vague” – a velha tentativa de tentar encaixar à força um universo de ideias em categorias de uma ou duas palavras de título – que não se concretizaram por completo. Com o passar do tempo, conforme ia descobrindo mais de seus primeiros filmes (Viver a Vida/Vivre sa vie, O Demônio das Onze Horas/Pierrot le fou) e lendo e relendo seus textos – ou seja, o tempo assimilando os pensamentos – fui gostando cada vez mais de Godard.

Há cerca de dois meses, vi Masculino-Feminino/Masculin Féminin. Ainda sigo pensando bastante no filme, desde então. Aqui, Godard parece estar criando um novo ponto zero em sua filmografia – uma arte que aglutina diversas formas e matérias que vão muito além da imagem, mas indo além das caixinhas que os gêneros cinematográficos (noir, musical, melodrama) permitiam colocar seus filmes anteriores. Masculin Féminin é uma mesclagem radical do singular e do cotidiano, da ficção e do documentário, do imaginário e da realidade.

Uma cena que não sai da cabeça: toda a sequência dentro do cinema, uma versão completamente oposta (ou crítica?) à sequência do cinema de Vivre sa vie. Na tela, no lugar da dramatização do julgamento de Joana D’Arc por Carl Theodor Dreyer, uma frieza gélida ao ver uma cena comum de um homem tentando uma relação sexual à força com uma mulher. No lugar do deslumbramento com os closes no rosto de Maria Falconetti, uma revolta com tudo estar sendo mostrado na janela de exibição errada. No lugar da lágrima de Anna Karina, a decepção estampada no rosto de Jean-Pierre Léaud. Somente Godard poderia criar duas versões de uma visão e atingir a transcendência em ambas.

Nos próximos dias, eu pretendo avançar no que Godard fez de 1967 em diante. E, ao mesmo tempo, continuar deixando o tempo a assimilar os pensamentos sobre o que estarei vendo. E revendo.

Um tímido retorno

Os dois primeiros textos que postei parecem que foram escritos há uma eternidade. O terceiro, um desabafo momentâneo e tímido, já era sintoma de tempos mais complicados.

Este pequeno texto que publico agora talvez seja um retorno, ou uma continuidade a este espaço. Claro, a seu tempo adequado. Aliás, uma coisa que sinto que ando aprendendo nos últimos dias, conforme estou fazendo a mudança gradual de meus medicamentos contra a depressão, é tentar conceder ao tempo a paciência que merece. Em vários momentos dos últimos anos, sendo o mais recente os últimos meses de 2021 e os primeiros dias de 2022, me desesperei com a sensação do tempo desperdiçado, que se misturava à sensação de não estar conseguindo fazer nada, focar em nada. Agora, conforme estou pisando com cautela em caminhos diferentes, espero que as coisas que gosto de fazer possam ser feitas.

Por isso, retomo este espaço, meio sem traquejo social, ainda, mas com alguma vontade promissora de seguir em frente. Sejam (mais uma vez) bem-vindos.

Música inspiracional para 2020 (e 2021)

See because alone in my room

I feel like such a part of the community

But out on the streets

I feel like a robot by the river

(Smog, “Ex-Con”)

Nos primeiros dias de pandemia, numa época em que poucos sabiam que estaríamos hoje numa situação ainda pior – e que pode piorar ainda mais nos próximos meses, mesmo com a vacina já rolando por aí – o site de música Pitchfork publicou uma lista de músicas que os redatores estavam ouvindo naquele momento. Logo no início, aparecia “Red Apple Falls”, disco de 1997 do Smog, nome pelo qual Bill Callahan lançou seus discos, antes de assumir seu próprio nome em seus trabalhos a partir de 2007. O comentário do redator a respeito do disco me chamou a atenção imediatamente, e fazia muito tempo que palavras de um jornalista de música não me convenciam a ir atrás de um artista.

Nove meses depois, olhando em retrospecto, percebo que, desde aquele final de março, não passei uma semana sem ouvir pelo menos uma música de Bill Callahan. Ele – junto com as dezenas de bandas neozelandesas surgidas nos anos 1980 que passei a dar mais atenção (o que, inclusive, rende muito texto) – foi a principal trilha sonora neste ano desgraçado que está se encerrando.

Durante seus trinta anos de carreira, Callahan retratou diversas facetas em suas imagens organizadas em formato de canções: dissonância, solidão, isolamento, falta de coragem, tragédias do dia-a-dia, esperança, ajuste e desajuste, reflexão, os subúrbios e as florestas, as casas e os rios, confiança, amor, imaturidade e amadurecimento etc. Todas essas coisas fazem parte da vida, convivendo com elas ou não.

Neste 2020, avancei no trabalho, concluí minha graduação em jornalismo e me senti mais seguro com o que faço e posso fazer; mesmo com a depressão surgindo com mais imponência em várias oportunidades, e mesmo com o noticiário lá fora dando mais volume ao pessimismo que me acompanha, como uma parte decisiva de minha personalidade. Ao longo desse percurso, as imagens musicais criadas por Callahan me acompanharam, fornecendo, além de uma trilha sonora, compreensão para os dias mais confusos, apoio para os dias mais deprimentes, alegria para os dias mais esperançosos e inspiração para os dias mais criativos.

Acima de tudo, o que mais me fascina nas músicas de Callahan é a forma absolutamente pessoal e ao mesmo tempo universal que ele estabelece em sua arte. A noção de que pouco importa se seja algo carregado de introversão ou com excesso de esperança; importa mesmo é ter uma voz própria perante o mundo onde vive e compartilhá-la da maneira mais alta e barulhenta possível.

É uma das filosofias que pretendo seguir em 2021. Que o ciclo que virá seja menos doloroso e mais feliz para quem realmente merece.

*

MEUS CINCO DISCOS FAVORITOS DE BILL CALLAHAN (aka SMOG):

(eles podem ser encontrados no serviço de streaming de sua preferência; e, caso goste e tenha um dinheirinho sobrando, compre um vinil, CD ou arquivo de áudio para o músico, como forma de agradecimento)

The Doctor Came at Dawn (1996) – Um dos comentários para um vídeo no YouTube com a primeira música do disco diz o seguinte: “Grimmest album that I know of. Makes Nick Cave sound like Raffi.” É uma provocação, claro, mas não deixa de ser interessante pensar como às vezes Callahan conseguia soar tão obscuro quanto Cave em seus discos mais pesados, com letras e instrumentação muito mais minimalista. Um disco denso, que parecem ser feitos para serem ouvidos em um fim de noite ou madrugada silenciosa, com o vento frio soprando da janela.

Red Apple Falls (1997) – Sobre finalmente encontrar uma satisfação de estar em uma comunidade, e se acertar consigo mesmo, mesmo ainda se achando por vezes um pária. Primeiro dos dois discos gravados com o auxílio de Jim O’Rourke, que produziu discos do Sonic Youth, Wilco, Superchunk etc (e também faz música pra lá de interessante).

Dongs of Sevotion (2000) – A consolidação de toda uma década de ideias e experimentações, levadas à extensão máxima. Atinge o sublime nas três últimas músicas, especialmente na elegia de “Permanent Smile”.

Woke on a Whaleheart (2007) – Primeiro disco que Callahan assinou com seu próprio nome, e o meu favorito. Country, guitarras carregadas no pedal fuzz, backing vocals ao estilo gospel, baladas melancólicas ao piano e a segurança de juntar tudo isso e criar a música mais original e aconchegante que poderia ser criada.

Shepherd in a Sheepskin Vest (2019) – seis anos, um casamento e um filho depois, Callahan ressurgiu no ano passado com 20 canções simples em seus arranjos e ricas de sabedoria e lucidez de uma vida de mais de meio século de duração – e contando. Como em seus grandes momentos, aqui pequenos segredos podem revelar-se inéditos a cada nova audição.